Ondas, ventos fortes, chuva e sol. O perigo que ronda as embarcações que se arriscam na travessia em ‘mar aberto’ entre o porto do povoado Pau Deitado, no município de Paço do Lumiar, e o arquipélago das Marianas, no extremo norte do estado, é de causar temor a qualquer mestre de embarcação experiente. Mas não para a médica Joana Ramos da Rocha, de 82 anos. Medo é um sentimento que nunca existiu e enfrentar esse mesmo percurso todos os meses é mais que um desafio, é um compromisso de vida.
Dona Joana tem um motivo muito especial para se lançar ao mar na perigosa travessia de barco pelo menos uma vez por mês. Ela é a única médica que presta atendimento às comunidades de pescadores que habitam Carrapatal, Santana, Jurucutuoca e Pedras, quatro ilhas do arquipélago das Marianas, no município de Humberto de Campos, a cerca de 45 milhas de São Luís.
São 12h20 do dia 16 de janeiro de 2016. No Porto do Pau Deitado, o barco ‘Cavalo Marinho’, uma daquelas embarcações de pesca tipicamente maranhense, aguarda desde cedo a chegada da sua principal passageira. Joana Ramos chega sorridente e, com muita disposição, sobe no barco se equilibrando em cordas. Começa a viagem que demorará cerca de seis horas até a sua primeira parada, que é a Ilha de Carrapatal.
A travessia é perigosa. No início da viagem, o ‘Cavalo Marinho’ enfrenta ondas traiçoeiras e os fortes ventos da baía de São José. Etapa vencida, o barco segue em frente singrando agora as águas do Oceano Atlântico.
Joana não se abala. Durante toda a viagem ela leva na mão esquerda a inseparável maleta branca; na direita o rosário que segura com força entre os dedos e nos lábios pintados de batom vermelho um cativante sorriso. No coração vai prosseguindo a viagem motivada por uma intensa vontade de servir.
A médica viaja sentada no convés do barco com o olhar firme no horizonte. Um mar a perder de vista e uma paisagem que ela diz conhecer há 43 anos realizando este mesmo percurso de São Luís até as ilhas do município de Humberto de Campos.
No balanço das altas ondas que não dão trégua e jogam muita água dentro do barco, Joana cantarola cânticos religiosos ou músicas da sua juventude. Os dedos sempre dedilhando o seu rosário.
“Não tenho medo algum. O que sinto é uma enorme vontade de servir. Sei que muitas pessoas estão além deste mar esperando a minha chegada. Eu tenho uma missão nesta vida e exerço a medicina como um sacerdócio”, relata.
Missão de vida
A missão da médica Joana Ramos não é para qualquer pessoa, aliás, ela afirma que é apenas para os fortes e destemidos. “É preciso, antes de tudo, coragem e amor à medicina e ao próximo”.
Aos 82 anos, Joana diz que idade não é empecilho para quem se dispõe a trabalhar, mesmo que este trabalho exija muito esforço físico e seja arriscado.
Moradora de São Luís, Joana faz esta mesma viagem há 43 anos, com a missão de levar assistência médica às famílias dos pescadores. Há oito anos passou a integrar a equipe médica do Programa Saúde da Família da Prefeitura de Humberto de Campos, a quem os quatro povoados estão subordinados.
Durante a travessia, Joana relata que outros médicos de São Luís chegaram a ser selecionados no PSF para trabalhar nas ilhas de Humberto de Campos, mas alguns deles só conseguiram fazer a travessia de barco a primeira vez e quando chegou o momento de retornar, eles simplesmente desistem e informam que não podem mais atender às comunidades das ilhas.
SANTUÁRIO ECOLÓGICO
O arquipélago das Marianas, localizado no extremo Norte do Maranhão, é formado por cerca de 30 ilhas. Quem as visita se depara com um verdadeiro santuário ecológico. Praias com dunas de areia branca a perder de vista, manguezais onde caranguejos e ostras proliferam em abundância e um vasto mar altamente piscoso. Ocorre que essa reserva ambiental, cercada pelas águas do Oceano Atlântico, também é habitada por famílias de pescadores que precisam de assistência básica, notadamente nas áreas de educação e saúde.
E foi em uma dessas ilhas que Joana da Rocha nasceu. O local se chama Jurucutuoca, um povoado vizinho à ilha de Carrapatal, cujo acesso se dá por uma trilha de areia no meio da mata. O percurso a pé é feito aproximadamente por uma hora. Se for de carroça puxada a jumento, diminui para 40 minutos. Ainda criança ela se mudou com os pais para Carrapatal.
Autodidata e determinada, aos 12 anos Joana decidiu que ia alfabetizar as crianças de Jurucutuoca, pois lá não havia escola. Então percorria sozinha a pé, por uma hora, a mesma trilha de areia que ainda hoje serve de acesso ao povoado. Mas a sua missão foi cumprida, pois muitos moradores que hoje são graduados em nível superior aprenderam a ler e a escrever com a então menina Joana da Rocha.
Aos 15 anos Joana decidiu que queria estudar e ser médica. Deixou Carrapatal em um pequeno barco à vela, rumo a São Luís. Com muita luta e perseverança, um casamento e uma filha, o sonho da medicina foi conquistado. E da mesma forma que um dia meteu na cabeça, aos 12 anos, que sozinha iria alfabetizar as crianças de Jurucutuoca, decidiu que por toda sua vida levaria assistência médica às comunidades do arquipélago das Marianas.
“O que me motiva a vir todos os meses é o meu compromisso de médica. Se eu não vier, quem virá? E depois, eles são a minha gente, as minhas raízes, os meus antepassados habitaram aquelas ilhas. Eu preciso cuidar deles”, afirma Joana.
Carrapatal e a fé no padroeiro
Joana não é apenas médica. É conselheira, madrinha, comadre, organizadora do festejo de São Sebastião, o santo padroeiro das comunidades das ilhas. É na Ilha de Carrapatal que reside a maior parte dos moradores do arquipélago. São cerca de 200 famílias, número que já foi bem maior, mas que aos poucos vai diminuindo porque os jovens estão deixando o povoado para estudar em São Luís ou São José de Ribamar.
Joana conta que só em Carrapatal possui mais de 100 afilhados, já que a maioria dos nascidos nos últimos 40 anos veio pelas suas mãos de obstetra ou com ajuda de parteiras leigas do povoado. A comunidade sobrevive quase que exclusivamente da pesca abundante - peixes, caranguejos, camarão, sururus, sarnambis e ostras. E não apenas os homens pescam, as mulheres e as crianças também.
A maioria das casas de Carrapatal é de alvenaria e as ruas cobertas por areia. Não há energia elétrica. O fornecimento é feito por um gerador, que é ligado às 18h e encerrado às 22h. Depois disso, todos se recolhem e a iluminação só por lamparina. Algumas casas da comunidade já dispõem de placas de energia solar.
História de amizade e devoção
Não é raro encontrar em Carrapatal uma família que tenha um membro cuja vida foi ‘salva’ por dona Joana. Nos povoados em que presta assistência, a médica de 82 anos é considerada quase uma santa.
O jovem Diego, de 26 anos, conta que foi encontrado por dona Joana por acaso, quase morto em uma maca nos corredores do hospital Socorrão. “Foi só dona Joana me achar lá morrendo no hospital, me operou, cuidou de mim e estou aqui vivinho”, relata ele. De tão grato, o jovem resolveu fazer a tatuagem de uma cruz no abdome em homenagem à médica.
Em Carrapatal há, também, histórias de amizade e devoção que já duram décadas como a José Ribamar Reis, de 87 anos, que diz ter sido salvo de um AVC por dona Joana. Ele hoje mora em São José de Ribamar e mesmo sem mover as pernas devido às sequelas da doença, todos os anos faz questão de reunir a família para participar do festejo de São Sebastião, em Carrapatal. “Devo minha vida ao padroeiro e a Joana, por isso não posso deixar de vir todos os anos agradecer”, diz ele, cercado de carinho pela família.
O trabalho de assistência médica realizado por Joana da Rocha nas quatro ilhas tem conseguido manter em bom estado a saúde dos moradores das comunidades. Quem atesta é o agente de saúde José dos Santos Rocha, que trabalha na comunidade de Carrapatal. Ele explica que a médica atende no posto durante uma semana, uma vez por mês, verifica a pressão da população, mantém o controle dos que apresentam alteração de glicemia, e outros serviços básicos. “Nós damos graças a Deus em ter dona Joana aqui, pois ela enxerga nos pacientes o que outros médicos não conseguem ver e diagnosticar”, diz ele.
Nas comunidades não há hospital e quando o caso é muito grave, o paciente é transportado de barco para São Luís, Humberto de Campos ou São José de Ribamar.
Quando está em São Luís e algum morador passa mal, dona Joana é acionada por telefone e já espera o paciente no porto de São José de Ribamar para acompanhá-lo até o hospital em São Luís. No caso de gestantes, quando a médica está nas ilhas já orienta sobre o dia previsto para o parto para que esta se desloque com antecedência até São Luís. E, assim, ela tem conseguido salvar muitas vidas.
Falta estrutura nas comunidades
Um dos problemas que mais afligem as comunidades de Carrapatal, Jurucutuoca, Pedras e Santana é a dificuldade de comunicação. Os moradores das ilhas não conseguem sinal de nenhuma operadora de telefonia móvel. Os ‘orelhões’, telefones públicos instalados em algumas ruas, não funcionam.
Na ilha de Carrapatal os moradores descobriram uma forma inusitada para falar com os familiares que moram em outros municípios. Mas, para isso, enfrentam uma verdadeira maratona. Caminham vários quilômetros até conseguir escalar o morro do Ururbu, ponto mais alto do povoado. A etapa final consiste em subir em árvores para tentar capturar o sinal de telefonia dos municípios mais próximos. E nem sempre logram êxito.
Enfrentando dificuldades, mas com fé no padroeiro São Sebastião e a dedicação da médica Joana da Rocha, as comunidades do arquipélago de Mariana vão levando a vida e construindo sua história em meio a tanta beleza e encantamentos que a natureza proporciona.